sábado, 29 de novembro de 2014

Uma carta imaginária para a vó Tutinha

Querida vó Tutinha, A senhora me pediu para escrever amiúde. Não deu. Andei atarantada por aí. As voltas que o mundo dá. Sabe o ferro que era de ferro, que a gente punha um prego atravessado para ele não abrir? Agora é a vapor. Muito leve e ainda assim se chama ferro. Estira bem sem ser pesado. Fogão a lenha, só se for luxo. Usamos a gás. Perigoso é. De tempos em tempos explode algum por descuido do dono e vai tudo pelos ares. Lembra que a gente esfriava mamadeira das crianças no rego d'água? Geladeiras são comuns. Com degelo automático. Nem dá trabalho pra descongelar. E as panelas então? Já vem tudo areada, de inox e até de vidro. Tanto progresso que só vendo. As moças, vó, não usam mais casar. Só usam. E ninguém acha sem-vergonhice não. Aquilo que a senhora achava um pecado cabeludo, hoje é uma atividade normal. Assim como respirar, andar ou beber água. Engravidar? Tem perigo não. Tem remédio pra tudo. E até uma tal de pílula do dia seguinte caso dê azar. Ruim é a tal da AIDS. Muita gente que pegou. Pega no contato sexual e em transfusão de sangue também. Lembra que o pai tinha sífilis e que eu quase nasci cega? Que meu olho por dois anos era só pus? Não fosse Santa Luzia... Pois é, essa doença de quatro letras é muito pior e ainda não tem cura. Por ora a indústria de remédios é que vai lucrando. A grande devoção é a uma entidade chamada Mercado. É comum a gente ouvir: "o mercado está nervoso", "o mercado tá em crise", "o mercado oscilou" e por aí vai. Bar é oratório. Fiéis perfilam-se diante de prateleiras cheias, iluminadas com todas os matizes de cores. Lá permanecem até o amanhecer, afogando as mágoas. É comum ver gente falando sozinha nas ruas, nos pontos, nos ônibus e dentro dos carros, que a senhora chamava de "máquinas". Tão loucos não, vó. É um aparelhinho chamado celular que inventaram para a comunicação com as pessoas. Funciona como um brinco, já que ninguém o tira da orelha. É sucesso absoluto e ninguém mais escreve cartas. A cidade de São Paulo é um colosso. Somos pra mais onze milhões de habitantes e a sexta maior aglomeração urbana do mundo. Cada arranha céu mais bonito do que o outro. A gente pobre espirra para os arrabaldes, se amontoando como dá. Tanta favela! Chamam “comunidade” e vivem se incendiando por aqui. Especulação imobiliária é fogo. A senhora reclamava dos botequins que só serviam para desencaminhar os moços. Outro dia, num boteco, ouvi perguntarem para um freguês porque ele batia na mulher. "É para ela deixar de ser feia", ele respondeu. Tem jeito, vó? Cidade grande tem de tudo. Gente boa e gente ruim. Mas, a maldade tá solta. Dizem que a violência cresce porque as pessoas não se conhecem, não se gostam e não se tocam. Solidão na multidão. Um ósculo e um amplexo, da neta que muito a estima. https://soundcloud.com/miltonjung/conte-sua-historia-com-suely-schraner http://miltonjung.com.br/2014/11/29/conte-sua-historia-de-sp-uma-carta-imaginaria-para-a-vo-tutinha/

sábado, 15 de novembro de 2014

Territórios da memória


Raios de sol riscam o chão. O espaço era Gaia. Condutores de lembranças. 
Territórios da memória.

foto:suely schraner

No jardim de miosótis, semear a nossa história. 

A tristeza foi embora e a saudade vem agora. 
foto:suely schraner

As flores que a mãe plantava, emoldura a nossa hora. Embaralha o pensamento, no vaso que brota e chora. Desfolhando toda a vida , substrato da memória. 

Nos sonhos reativados, um Pé-de-Juá se eleva. Sobre a terra calcinada, casal se deita e releva. Na dura vida que leva, esperança se revela. Pensa na vida latente, barriga que ora cintila. Do lado, poça obscura e água salobra quente. 

Já nos sonhos à galope, o cavalo mais amigo. Corre, leva ao cajueiro a jovem que vai ligeira. Alcança qualquer parada. Avança leve e fagueira. 

Uma linda Pitangueira ilustra o sonho infantil. No quintal daquela avó, a guirlanda de pitangas, enfeita e inspira a aprendiz.
foto:suely schraner


Um vento bate e balança, Guapuruvu que era “a Gê". A copa, em forma de cálice, preenche todo saber. 

A mangueira mais querida guarda histórias como a brisa. Colinas encantadoras, amores primaveris. 

Substrato, vida breve, resiliência e aprender. Foi naquele bambuzal um caso de enternecer. Leveza, amores e cores. Entremeios de gorjeios. Cantiga de passarinho rivaliza com carinho. Da disputa entre os dois, ganhou o que branco era. E neguinho se conforma dizendo: que nada, que oras bolas! Onde anu-branco repousa, anu-preto não tem hora. Acabou-se o que era doce. Daqui eu já vou me embora.
Quanto custa um bem querer, Anu preto do sertão. Soubesse a dor da saudade não cantava assim mais não.

Por fim, um sonho conjunto. Jardim a realizar. Mão na massa todos juntos. Um mundo novo criar.
foto:suely schraner

Nota:
Miosótis: 
Planta rasteira que tem origem na Rússia,
A explicação do nome "não-me-esqueças" da flor pode ser explicada por algumas lendas. Uma delas diz que num belo dia de Primavera, dois jovens apaixonados se encontravam à margem de um rio. Nas águas turbulentas, a jovem avistou um ramo de miosótis flutuando e ficou maravilhada pela beleza da flor. O seu amado, mergulhou então para apanhar as flores e oferecê-las à sua namorada. No entanto, quando tentou voltar para a margem, foi arrastado pela forte correnteza. Esta lenda conta que pouco antes de desaparecer ele gritou para a sua amada: "Não me esqueça, me ame para sempre!". A partir desse dia a flor miosótis passou a crescer nas margens dos rios, para que mais ninguém tivesse que morrer por sua causa.
Uma outra lenda conta que Adão, quando estava no Jardim do Éden dando nome às plantas, esqueceu-se de uma planta muito pequenina, que interpelou Adão para saber qual seria o seu nome. Adão então disse que seria “Não-me-esqueças”, para que ele nunca mais a esquecesse.
A flor Miosótis (Não-me-esqueças) é conhecida também em outras línguas como: “Forget-me-not” (Inglês), “Vergissmeinnicht” (Alemão), “Nomeolvides” (Espanhol), “Nontiscordardimé” (Italiano).
A flor Miosótis foi utilizada como emblema secreto da Maçonaria, para que os maçons pudessem se identificar durante as perseguições às lojas maçônicas na Alemanha.
É uma flor que simboliza a caridade e a fraternidade.
Dizem que as lágrimas derramadas nas pétalas pela Virgem Maria deram a cor azul à flor. Existem Miosótis também nas cores branca e rosada. São plantas rasteiras que se dão bem em baixas temperaturas e surgem na primavera. Fonte: http://www.significados.com.br/flor-miosotis/
Guapuruvu: árvore de grande beleza ornamental cujo tronco é utilizado para fazer canoas e as sementes para bijuterias.
Juá: também conhecida como juazeiro. Fruto amarelo. Tem propriedades medicinais. Típica da caatinga nordestina.