sábado, 11 de outubro de 2014

Coruja buraqueira

suely schraner

Brincadeiras infantis

suely schraner


Quando eu era menina, brincava de passa anel. Também de contar casos. Queimada nem pensar. Lerda demais. Pular corda não dava. Muitas marcas nas canelas. Subir em muros, árvores, nada disso. Sonsa de tudo. Minha brincadeira mais arrojada era jogar peteca.

Curtia a interação com a natureza e de como a percebíamos. Não me acanhava em construir bichinhos com maxixe, chuchu ou batatas. Fazer “cozinhadinhos” de mentira, em panelinhas de ferro presenteadas pela madrinha.

Bambolê eu experimentei, mas era um aro qualquer.  Aspiração à bailarina, quem sabe... Cintura fina, talvez. 

No carnaval pulava contente, esguichando lança-perfume nos outros. Não era proibido ainda.

Dizem que no Antigo Egito, encontraram bonecas em túmulos de crianças. Eram feitas de madeiras, banhada na argila, com forma de espátula e cabelos de verdade.  As minhas eram de pano. Bruxinhas que a vó Tutinha fazia. Eu costurava seus vestidinhos imitando o figurino das heroínas da revista Grande Hotel. Folhear revistas de adultos me embevecia.

Consta que a fabricação de bonecas com objetivos comerciais teve início na Alemanha e em Paris, por volta do século XV. Eram feitas de terracota, madeira e alabastro (tipo de pedra). Um dia eu ganhei uma boneca de porcelana. No colo da minha avó chacoalhei tanto, que a dita escapou da minha mão e virou mil cacos no chão. Durou só um dia.
Adorava minhas bruxinhas chacoalháveis. Queridas de cores e amores. Esplendores infantis.E brincava divertida nas enchentes que afligiam os adultos do povoado. 

Tão boba, doei meu anelzinho, presente da Dindinha, para a campanha “Doe Ouro para o Bem do Brasil”. Eu, hein?

Menino, brincava de tudo: pega-pega, cabra cega, esconde-esconde, atirar pedras em árvores e até com estilingue, matando os passarinhos. Mocinho e bandido.

Em São Paulo, dentre as proibições prescritas pelo artigo 142 do Regulamento Geral do Trânsito, era proibido a prática de futebol nas vias públicas (Estado de SP, fevereiro de 1954). Já em 1958 o Brasil foi campeão do mundo na modalidade.


E você, do que brincava?

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Leseira

foto by suely schraner


“O crack é leseira. Agora tô só na cola, disse e sentou-se.
Para comprar uma pedra, preciso de dez reais. Já a cola, com dois ou três, eu consigo.
Ela ficava sempre no Centro. Falo que quero ser o homem da sua vida. Qual homem que hoje em dia quer uma mulher pra sempre? Eu vejo tanto homem por aí batendo, barbarizando, cheio de ciúme. Eu não. Se ela quer sair com outro que saia. Nem tenho ciúmes. Vou prometer tudo na quarta-feira, que é o dia da visita lá no cadeião. O que me azara é que ela fala pras amigas que sou seu amigo. Só quero que ela reconheça. Os bacanas amigos dela, até agora não apareceram lá na visita. Nem trazer um pão sequer. Eu não. Eu venho.
Bem sei que qualquer um que está na cadeia, acha que todo mundo que está aqui fora, é bom. Eu já passei por isso. Não tanto tempo quanto ela. 

Pô! Ela já tem três filhos, tá ligado, cara? Um sumiu. Ela nem sabe quem roubou. Outros dois, tão com gente da igreja .Falo pra ela: vão crescer e acabar na rua como nós. Quero levá-la pro caminho de Deus. Se é difícil pros que estão fazendo a coisa certa, pra nós então, é mais difícil ainda.
E quero ter um filho com ela. “Aqueles”, nem ela sabe de quem são. Quantos anos ela tem? Dezenove. Eu tenho vinte. Conhecer melhor? Não, cara. Conheço ela muito bem. Desde criança.

Só uma coisa eu vou prometer e sei que não vou cumprir. Ter um pouquinho de ciúme. Isso eu vou sim. Ela bonita demais. Até engordou um pouco, na prisão. Gosto tanto dela!  Adoro mulher de olho verde. Ou será azul?

Quando ela queria sair, nem implicava. Nem com roupa, nem com horário, nem com os caras, nada. E comigo ela não decide, pô! Falo pra ela: Caraio! A visita só tem três horas e você me larga para fumar maconha lá no canto!  Fica rindo com as amigas.

Vou indo. Acha que ela me ama? Vou lá falar com ela. Olho no olho. Bem assim como nóis agora, né tia?

Ferocidade

Caça
feroz
na 
cidade
que
mata



Preferência


ser
preferido
que 
indispensável
é
melhor


quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O prédio



foto by suely schraner




A tarde trazia consigo melancolia de pôr-do-sol. Andara o dia o dia todo. As têmperas latejando. Britadeira batucando do outro lado da rua. Demolira planos. Rompera ilusões. Nadara em águas revoltas. Nebulosas da memória. Mistura de vinho com Rivotril, as suas sinapses poéticas.

Ávidos edifícios o espreitam.
Pele de vidro e frita aves. Caleidoscópio lancinante. Lugarzinho inabitável. Áreas descomunais. A planta letal. A vida por um fio é que dá força para amar. Certificar o nada.
O desespero a um passo da felicidade.

Deu por si e estava diante dela.
“Não esperava te encontrar aqui”. “Ah, bem sabe que minha vida é nos cascos”. “Sei, nos sapatos e na cama”. “Andou chorando?”
Abaixa os olhos. “Cisco”.
Sinto que gostaria de me beijar. “Diga-me, será que desta vez conseguiremos? “O não nós já temos". "Agora, é tentar o sim”.
Passam despercebidos.

No andar, começara a sentir-se mal. “Você está doente? “Cisco”. Tá brincando! “Sinta o cheiro”. De morte? “Não amole, é cheiro de felicidade”.

Embolados. “Sabia que o corpo fala? Às vezes faz bem ficar doente”. “É a vida chamando a atenção da gente”. Tem o dinheiro?
“Daqui dez dias”. “Dez dias não é possível. Até lá...”

Saem.

O sol se escondera detrás do prédio.
Espelhado e colorido.
Caleidoscópio onírico. Na planta ou próprio para morar. A vida alucinada. 
Certificação AQUA- alta qualidade ambiental. Áreas comuns generosas.
A felicidade a um passo do desespero.