Ajeita o cabelo, passa brilhantina e coloca o boné ainda dentro da garagem. A mulher o indaga sobre aonde vai. “Caminhar é bom pra saúde. Viajar de carro até a padaria engorda, faz mal pra gente e contribui para a mudança climática. Em mim é que ninguém vai pôr a culpa destas coisas ruins”, ele disse.
Mais um dia pela frente. Andará com fé. Exercerá a mais antiga qualificação humana. A mulher abrirá o portão de pedestre e acenará já de costas. Na semana anterior gastara o domingo arrumando as plantas. A planta do pé doía. De tanto ficar de cócoras, estava com as pernas e costas doloridas. O que interessava afinal é que estava tudo arrumado e o jardim ficara lindo. Os olhos embotados de lembranças e silêncios.
A calçada inóspita, caçambas e que tais a obstar o alegre e saudável movimento das pernas. Pernas bambas escorraçadas para o meio da rua entupida de veículos. Pensará que dentro do carro o homem é um, fora dele é outro. Uma isca de espaço para caminhar. Sonhara com um ambiente urbano mais harmonioso. Calçadas mais largas, sem buracos, degraus ou rampas. Risco no percurso e não só na travessia, exigirá do seu corpo esforço extra.
Desenvolverá um bom padrão de marcha pisando primeiro com o calcanhar e, em seguida, com a planta do pé. Não esquecerá de que, trabalhar a lateralidade (esquerda e direita) é importante no flanar. Pensará que a habilidade da mobilidade está dentro da gente.
Do jegue ao automóvel, a vida em desnível, saltos e sobressaltos. De assalto um pensamento acorrerá lembrando que, o ponto de encontro em que se dará o conflito entre motorista e pedestre é quando estes cruzam a via. Pois agora tentava cruzar a avenida. Lembrara de visitar um amigo que retornara de uma internação. Haveriam de celebrar o reencontro. O que interessava afinal é que o pão estava quentinho e a prosa da padaria, mais a caminhada, tinham sido formidáveis.
Lembrará que o pedestre depende da educação e do humor do motorista. Que deu no jornal, que no ano passado, 630 pedestres morreram atropelados em São Paulo. Nas esquinas ou cruzamentos, motoristas podem até reduzir a velocidade, porém nos trechos contínuos, é um “salve-se quem puder”.
Com um gesto solene acena que irá atravessar a rua. Na certeza de que foi visto pelo motorista, segue em frente. Sente um pouco de tontura. Deve ser o cansaço. Virara-se muito naqueles dias, trabalhara como um condenado, amara como se fosse jovem, levara empurrões pela cidade ao ir aos correios e ao banco. Correra para dar tempo de passar na faixa de pedestres, antes do semáforo fechar. Caminhara muito hoje. Por tudo isso ele se sente cansado e pisca longamente.
Abre os olhos e vê o carro chegando num átimo. Sacola de pão voou longe. Num instante um silêncio e um branco. O seu instante chegara.
Agonizará no meio da av. Senador Teotônio Vilela, zona sul de São Paulo. Não parou o tráfego. Ninguém anotara a placa.
A vítima não conhecera seu assassino. O assassino não planejara matar ninguém. Mais um impune na cidade. Impunidades.