domingo, 16 de janeiro de 2011

Desbravar São Paulo, o início

- Ih, minha filha. Ora se eu me lembro. No dia que vim para cá, era todo mundo vomitando. Aquilo chacoalhava que só vendo.

- Minha vinda foi triste. Só um mês de viuvez. A mais nova recém-nascida. Fui para casa de parentes. Tudo muito custoso e sofrido.

- Eu vim de Maria Fumaça. Com os meninos mais novos. Os grandes, já estavam aqui trabalhando. Foi preciso dois táxis. Saímos de uma casa de doze cômodos para uma de quatro.Quantos filhos? Vinte e dois.

- E eu? Vim na carroceria do caminhão. Treze dias de viagem. Estrada? Tinha não. Só terra e ribanceira. Vi caminhão que vinha atrás, despencar logo depois que passamos na pinguela.

- Já eu, mudei para uma casa em construção. Nem porta nem janela. Meu marido ia fazendo aos poucos. Filhos? Só uma mais a outra, na barriga que eu peguei, logo ao chegar.

- Chegamos direto na Estação da Luz. Fomos caminhando, da Luz até a Praça da Árvore. Sem costume na cidade, não agüentamos não. Só mais um ano, depois voltamos. Aqui estamos e aqui ficamos.

- Eu vim encaixotado. O agente foi lá em Minas. Falei prá mamãe: “vou trabalhar em São Paulo”. Onde? “Na Light”. Fiquei morando no alojamento. Documento tinha não. Nem registro de nascimento. Nem Light. Só na construção e no galpão.

- Eu lá em Pernambuco. O homem, mais de 11 meses sem me mandar uma linha. Escrevia pros outros, ora. Aí, me danei. Vim para São Paulo. A menina só urinava que fralda descartável não tinha não. Vergonha daquele fedor no ônibus.

- Cheguei num dia muito frio. Saí de Minas com um sol vermelhão e um calor de rachar. Roupa de frio? Tinha não. Aqui fui trabalhar na britadeira. Depois na construção civil.

-Morei na Cidade Ademar. Depois mudei pro Jardim São Luiz. Saudades dos amigos? Senti não.

- Vim de Alagoas. Sozinha com a menina. Marido? Larguei pra lá. Emprego já arrumado. Que fama de trabalhadeira eu tinha. Onde? Em casa de família...

-Aqui era garoa direto. Tava acostumada não. Fui ficar na casa da minha tia. Também arranjei serviço em casa de família. Depois fui trabalhar numa firma, mas não deu certo.

- Morei em Ilhéus. Uma beleza. Vim sozinha pra cá. Chorei muito. Fazer o quê? Meu marido já estava aqui. Lá, em ilhéus, a praia pertinho. A feira, os barcos, o céu azul, tudo encostado. Fiquei apaixonada. Aqui? Tudo muito diferente. Muito difícil.

- Vim pra ser freira. Sozinha com 10 anos de idade. Mala e bilhete mais o dinheiro pro táxi. Passagem foi grátis no avião da FAB. Destino: Avenida Nazaré, Convento Sagrada Família. De onde? Cuiabá, Mato Grosso.

- Chegamos apenas com a roupa do corpo. O pai foi trabalhar com a picareta. Tirando paralelepípedos para dar lugar pro asfalto. Onde ficamos? Num cômodo de madeira. Tudo junto e misturado. Quantos? Só dez.


No Dia Em Que Eu Vim-me Embora (Caetano Veloso)

No dia em que eu vim-me embora /Minha mãe chorava em ai /
Minha irmã chorava em ui /E eu nem olhava pra trás /
No dia que eu vim-me embora /Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui/
Minha vó já quase morta/Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua /E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho /Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo /Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada /Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo /Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital ...

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