terça-feira, 7 de setembro de 2010

Vicking


Ele chegou numa caixa de presente. A madrinha não se conformava que o afilhado não tinha nenhum animal de estimação. Não era pra ficar. Se a mãe nem tinha tempo para cuidar do filho, quem dirá de cachorro. Não teve jeito. Presente dado, com laços de fita e tudo, era coisa de se aceitar. Queira ou não queira.

Um cachorrinho bem bonitinho, peludinho, amarelinho e de olhos azuis e rabo de espanador. Quem iria resistir? Raça? Um mistério, mas era lindo. A mãe dele, uma pastor belga, pôs o traseiro no portão e, lá se foi o desejo incontrolável em tempos de cio selvagem. Tudo resolvido nasceu o Vick. Chamado assim porque de tão loiro e olhos azuis parecia mesmo um vicking. No dia em que chegou , chorou muito de noite. Foi necessário deixá-lo dentro de casa. Só parava se alisado na barriguinha. A família toda refém dele, para não incomodar a vizinhança. Cresceu nervoso e tinha claustrofobia. Para ir ao veterinário, só com calmante. Mesmo assim vomitava e se debatia sem parar. E não suportava solidão. O jeito foi deixá-lo na chácara. Quem sabe com mais espaço e liberdade... Lá, o caseiro vivia em apuros atrás dele. Saltava alambrado subindo na caixa d’água. Voava em busca de novos horizontes. Muito baixinho e de pernas tortas. Um SRD de muita coragem.

Uma vez em São Paulo, ladrão surgiu do nada. Do nada pulou o Vick e, foi revolver prum lado e ladrão pro outro. Logo ele, que latia tanto, desta vez atacou em silêncio. O dono, grato por toda a vida.

Vivia pegando berne e bicheira. De uma vez, o encontramos numa poça de sangue, já sem pele em muitas partes do corpo. Foram cento e vinte bichinhos tirados. Na veterinária, um sufoco para imobilizá-lo. Veloz e forte, derrubou tudo pela frente. Três pessoas para neutralizar um cachorrinho. Muita vitalidade numa embalagem tão pequena. De volta pra capital foi a alternativa mais adequada.

Num belo dia, apareceu a Helga, uma cachorrona boxer. Linda e calma a mais não poder. Tentou-se de tudo para encontrar seu dono. Cartazes, anúncios e nada. Os dois em São Paulo, dividindo o mesmo teto.

De pronto estabeleceu-se grande amizade. Como ele batia nas canelas dela, nunca nos preocupamos com castração. Passaram sete anos e eis que o improvável aconteceu. A Helga prenhe de tudo. Não deu outra. Seis filhotinhos “boxer-lata”. 

Tomadas todas as providências: vermífugos, corte do rabo e doações, ficamos com a Lea. Nasceu tão fraquinha e era tratada com vitaminas e leite na chuquinha. Uma leoa. Cresceu escalando alambrado, muito ciumenta e esquentada. Era só alguém olhar pra Helga ou pro Vick,que ela atacava-os impiedosamente. Não se passou nem seis meses, a Helga grávida de novo. Esse Vick gostou mesmo de ir no guincho. Mais oito filhotinhos.

Dessa vez ficamos com o Urso. Gordinho, guloso e amarelinho de olhos claros. Um urso mesmo. Adora ficar em pé e abraçar.

Em menos de um ano quatorze filhotes! O jeito foi castrar o Vick. Transar foi sua maldição. Quanta dor e humilhação e ainda ter que agüentar aquele colar elizabetano. As brigas entre a Lea e a Helga ficaram fora de controle.

Lea foi pra chácara junto com o Vick. Afinal os dois eram muito barulhentos e levados da breca. Lá, um caseiro free-lancer para trocar a água e ração diariamente. Mas os dois brigavam sempre. O ciúme da Lea só aumentou apesar de mais espaço e liberdade. No olhar do Vick, uma tristeza pela saudade de sua companheira Helga.

Para compensar, ele e a Lea ganhavam um osso por semana. Cada qual num lugar. A Lea dentro da cozinha com a porta fechada e o Vick lá fora. Nessas ocasiões, ele abanava seu rabo de espanador e virava de barriga para ser acariciado. O olhar translúcido de saudade.

Numa noite de tempestade e trovões ninguém ouviu a briga dos dois. Os ossos do mundo, uma armadilha. Morto a dentadas pela filha ciumenta. Os pêlos ensopados acariciados pelo sol do amanhecer. Não mais abanar o rabo-espanador, não mais deitar de costas para alisarem sua barriga. Morreu aos doze anos e deixou a Lea muito machucada para ser sacrificada. Desculpe, Vick não consegui trazer você de volta para sua Helga.

Nenhum comentário:

Postar um comentário